BRANCA, UMA HERANÇA MILENAR...
De Luiz Carlos Lourenço
Fotos de arquivos
A maquiagem artística tendo como base a cara branca esteve e estará sempre presente no teatro, no cinema, nas novelas e mini séries de TV, nas festas infantis, nos palhaços, e, acima de tudo, nas caracterizações caricatas para o carnaval. Desde o início do teatro, os atores usam maquiagem no palco. Da Grécia antiga ao teatro do oriente e à Broadway atual, a maquiagem teatral tem sido parte das peças. O uso e a aplicação da maquiagem para o teatro evoluiu ao longos dos milhares de anos mas o resultado final dos personagens é sempre um fascínio.
Durante o século XVII, os atores do Teatro Kabuki tiveram que viver às próprias custas quando o xogunato baniu as mulheres (Onna Kabuki) do teatro, em 1629, as quais foram rapidamente substituídas por rapazes kabuki (Wakashu Kabuki). Quando foi condenado como socialmente indecoroso em 1652, todo os papéis passaram a ser representados por homens maduros (Yaro Kabuki). O Kabuki permaneceu sob a regulamentação do xogunato como uma forma necessário de entretenimento popular perversa, imoral e que não podia ser banida. Na realidade, este controle provavelmente contribuiu para o amadurecimento do Kabuki como expressão dramática. Os atores mais maduros, desprovidos dos atrativos e do aspecto cativante das mulheres ou dos rapazes, tinham de representar a aprofundar e emoção dramática para agradar ao público.
No teatro Kabuki, os complementos como as perucas e a maquiagem tendo como destaque um fundo branco são uma parte fundamental do papel. Em peças históricas como Shibaruku, a maquiagem é espessa, elaborada, fantástica como uma máscara, enquanto que em dramas do cotidiano é ligeira e realista. Como no teatro Nô, os atores Kabuki provêm a maior parte das vezes de famílias de atores e começam a ensaiar desde muito novos, aprendendo não só os papéis, mas todos os movimentos do Kabuki, figurinos e acima de tudo, da complicada e trabalhosa maquiagem.
BRASIL DE CARA BRANCA
Nos palcos brasileiros, uma figura de destaque que usou como base a cara branca foi o cantor, dançarino, ator e diretor NEI MATOGROSSO, que enlouquecia plateias inteiras com sua caracterização como o solista do grupo SECOS E MOLHADOS e que agredia os mais conservadores, em áureos tempos da ditadura militar.
Segundo o ator e produtor teatral Gino Fonseca, que há anos dá vida ao personagem KATIA FURACÃO, foi a reminiscência da máscara do teatro que serviu como a peça ancestral que tem o poder da transformação, da transmutação em outro personagem, em outra “entidade como ela costuma definir:
"Existem muitas teorias para fundamentarmos esta cultura que invade principalmente os cortejos carnavalescos, afinal somos um povo Macunaíma. Recordando vários carnavais e a própria história do show business podemos chegar aos primeiros rostos brancos de sucesso que invadiram o cenário carioca e cujos nomes ultrapassaram o tempo. Na década de 70 tivemos as renomadas figuras da Mulher Maravilha, Margô de Valluar, Lola Montesi e Laura de Vison. No início dos anos 80 se firmaram a inesquecível Lola Batalhão, Isabelita dos Patins, a Mulher da Mala, As Irmãs Sisters, Petra, e Mimi Rosroiscer.
Segundo Gino, ele e o irmão começaram a se destacar na década de 90 como as Irmãs Furacão, Kary e Katgia, uma alusão à palavra caricata dada pelo jornalista Audiflax do extinto jornal gay O Grito:.
" A gente percebeu que logo que surgiram em cena, esses novos personagens causavam um grande tumulto devido à sua irreverência, a maquilagem sofisticada, o luxo dos trajes e, acima de tudo, como a grande novidade nas bandas, blocos e bailes. Passamos a mobilizar uma boa parte da mídia, surgindo mesmo como um furacão! Mas as criaturas já passaram a fazer parte da história das mascaradas de fundo branco: nasciam ali dois personagens que se consolidariam no carnaval carioca, entrando para a Dinastia das Caricatas de Caras Brancas.
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Gino Fonseca |
Gino lembra que a maquiagem do kabuki, como as caricatas do carnaval, sempre foi altamente colorida e estilizada. O ator usava no rosto uma base branca à base de óleo e depois cobria com uma maquiagem fosca branca. No kabuki, as sobrancelhas e a boca sempre forammais estilizadas. A maioria das maquiagens é branca, vermelha e preta. Como na Ópera de Pequim, o estilo da maquiagem revela muito sobre o personagem.
A maquiagem conhecida como pancake foi desenvolvida em 1914 pela Max Factor. Algumas marcas populares nos palcos são a Ben Nye e a Mehron. A maquiagem de hoje é segura e não possui chumbo. A maquiagem teatral de hoje pode ser usada para uma aparência natural ou para um ar criativo e detalhado, como no musical "Cats". Com o advento do látex líquido, passou a ser possível criar próteses grandes para qualquer papel.
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Com seu irmão Joubert Moreno |
Para muita gente que está começando nesta técnica ou mesmo para aqueles atores que não são muito craques na maquilagem é importante saber que tipo de recurso existe para seu rosto ficar mais colorido. !Essa make lembra muito o personagem Coringa(the Joker) do Batman. Só que a deste personagem o resultado no rosto é um pouco mais manchado e apresenta uma rugas e as cicatrizes.
Lembrando suas origens de garoto do interior, Gino recorda os velhos carnavais:
"Mesmo morando numa cidade pequena e tendo uma criação construída num tempo de inocências, me nutri de referências sólidas e que são e foram imprescindíveis na construção do meu personagem. Os homens sempre gostaram de vestir-se de mulher, se transformar em outra podemos ver isto nas referências fotográficas dos antigos cortejos. O carnaval também sempre foi um grande momento também para os homossexuais estarem mais protegidos num tempo de perseguições pesadas sobre este grupo.
" O povo adora teatro, ama o carnaval e o rosto branco, pálido, nos remete ao Teatro Grego, onde os homens faziam também os papeis femininos,
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Kary Furacão |
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Joubert M |
assim como o Teatro Kabuki, todo mundo passou pela magia do circo ingênuo do Palhaço Carequinha e Arrelia e agora tem a visão contemporânea disso no Cirque de Soleil. É o o poder da transformação, da transmutação em outro personagem, em outra “entidade como costumo dizer.”
Gino lembra que é fundamental respeitar sempre todos os pioneiros mascarados, os antigos, mesmo que eles já não consigam levar seus personagens com dignidade. Eles abriram o caminho para os novos passarem, agora numa estética refinada e glamorosa.
" A Katya Furacão é meu outro ego, minha obra de arte viva. É a outra metade de
mim, minha válvula de escape, meu ópio. Há uma embriaguez quando sou tomado por este personagem, um estado de torpor e possessão, um encantamento. Permito-me a esta transmutação. A Katia pode representar a minha porção mulher, a minha moça e remonta todas as reminiscências em minha volta. Todos os anjos da noite que abriram o caminho para eu passar, os homossexuais torturados, alijados do seio familiar, incompreendidos pela sociedade. Dedico
O artista diz que parte de sua criatividade deve-se à sua veia artística:
" Sempre fui criança habilidosa com as mãos, desenhava, fazia esculturas de tabatinga, construía castelos nas areias da construção. Fui carnavalesco do Estamos Ai, Espere por Nós e fazia a decoração do Club Piratas. Costumo dizer que meu processo criativo veio das nuvens...pois nunca imaginava apenas carneiros.
Do meu pai veio o envolvimento com a arte, com o carnaval. Sou neto de Manoel da Silva,
caçador, marcador de quadrilha, que vivia a vida entre a rede ferroviária e o lúdico das
quadrilhas e o esporte das caçadas. De minha mãe veio, a ternura, a vontade de crescimento pessoal. Sou neto de Antonio Fonseca,
comerciante de origem portuguesa, que sabia administrar o ganho de sua labuta.Veio do nada e construiu uma história bonita de lutas e vitórias.Ainda na minha cidade natal entrei em contato com assunto que jamais pensei trilhar em minha vida. Vi um velhinho que falava de educação através da arte, Augusto Rodrigues, fundador da Escolinha de Arte do Brasil – 1946. Foi meu mestre no meu caminho educacional, e junto a ele encontrei Ana Mãe Barbosa, Noêmia Varella, Vânia Granja e Maria de Lourdes Mader. Vi pela TV preta e branca uma escola de samba chamada Beija Flor e seu pequeno gênio Joãozinho 30. Sonhar com rei não apenas leão. Trabalhei ao seu lado depois de anos. Queria saber como pensava aquele pequeno criador de ilusões. Neste ano encontrei outro Guru que apertou o
botão da inquietação, da provocação. Celestino Sobral Pinto foi um dos responsáveis por me tornar um provocador. O artista também faz questão de se posicionar sobre questões importantes de sua vida particular:
"Nunca me encaixei no padrão de vida que a sociedade hétero impõe para os gays e nós seguimos inconscientemente, Parece que não temos amor fixo e vivemos sempre a procura como Liliths sedentas; não temos filhos e ficamos sempre com a criação dos sobrinhos; não podemos apresentar um amor e viramos o solteirão que cuida de toda a família. Minha vida sempre serviu como uma "jurisprudência". Saí de casa por ser gay expulso aos 21 anos, sempre tive casamentos longos e apresentava meu companheiro sempre à sociedade, Fiz a união estável antes do fato se tornar algo banal e ganhei processo no meu plano de saúde para meu companheiro. Agora adotamos um menino que é o primeiro em Niterói com o sobrenome dos dois pais. Estas conquistas foram do Gino Fonseca, o cidadão brasileiro, enquanto que a Katya tem outras lutas e vitórias. Não se pode confundir criador e criação".
LOLA BATALHÃO
Arthur Moura e Lola Batalhão
Um dos mais conhecidos artistas que usavam como base a cara branca foi o ator, diretor, aderecista, produtor de moda e personagem do carnaval Arthur Araújo de Moura Filho, criador do personagem LOLA BATALHÃO, que morreu em janeiro último . Nascido no Rio de Janeiro e morador na Tijuca, Lola foi a drag queen caricata que mais se destacou durante anos nos desfiles da Banda de Ipanema, e nas apresentações das escolas do Grupo Especial no Sambódromo. Fez durante muitos anos excelentes shows na maior parte das casas noturnas do eixo Rio- São Paulo, criando o troféu com seu nome, Lola Batalhão, homenageando os artistas e personalidades da vida noturna carioca.
Destacado artista pela sua criatividade, ele iniciou sua vida artística como ator, integrando o elenco do musical "Beleléu Existe Mesmo", ao lado da atriz Myrian Pérsia e de outros atores. Era também conhecido pela produção de reportagens especiais de carnaval em revistas semanais como "Manchete", "Fatos & Fotos" e outras publicações, tendo sido um dos criadores da Banda da Carmen Miranda, em Ipanema.
Uma das mais conhecidas performances de Lola Batalhão ocorreu logo após a fuga do traficante José Carlos Ensina, o Escadinha, que escapou num helicóptero do extinto presídio da Ilha Grande, no Rio. Lola apareceu num dos desfiles da Banda de Ipanema como "A noiva do Escadinha" que tinha um enorme helicóptero de brinquedo na cabeça.
Arthur esteve internado vários dias no Hospital São Francisco de Paula, onde chegou a receber a visita na UTi de Dom Orani, que lhe entregou uma medalha benta de São Sebastião. Ao seu velório e sepultamento, no cemitério Memorial do Carmo, compareceram vários amigos de carreira, como Isabelita dos Patins e Eula Rocha.
A MULHER DA MALA
Eduardo Rasberge e a Mulher da Mala
Outro personagem teatral que tem como base a cara branca é a Mulher da Mala, uma personagem criada pelo autor, criador e personificador Eduardo Rasberge (ator, cantor, bailarino, produtor, cenógrafo, aderecista, figurinista e maquiador de espetáculos), por volta do ano de 1986, para integrar a Banda de Ipanema e resgatar a alegria dos antigos carnavais.
Ela surgiu, instintiva e irreverentemente, como uma homenagem às mulheres, trajada à imagem da sua musa Carmen Miranda e fazendo alusão à personagem Priscila Capricci, concebida por Janete Clair na novela da Rede Globo – “O Sétimo Sentido” (1982). Sua face branca, maquiada à Marcel Marceau, inovou no figurino como representante do seu DNA “clown”, homenageando também a vocação do palhaço de circo.
a MULHER DA MALA foi criada numa época de transição em que o Brasil saía de uma ditadora e passava por um processo gradual de democratização
Uma época marcada por muitas transformações sociais e também pelos preconceitos e proibições, desamores e rejeições, falta de sorrisos e de alegria espontânea e contagiante.
A Mulher da Mala foi concebida com uma mala (com alça)sempre à mão, em trânsito de suas viagens, e retira de suas bagagens ingredientes vitais como: a irreverência, fantasias, brincadeiras, alegria, guardadas e empoeiradas durante a “Dita+Dura”…
Seus trajes e adereços são caracterizados pela utilização de materiais reciclados, demonstrando seu compromisso com a sustentabilidade e com a filosofia da sociedade ecologicamente correta.
Estas criações são exclusivas de seu intérprete (Eduardo Rasberge) e já foram premiadas por originalidade em concursos de fantasias e de teatro. Uma de suas fantasias: “A Bagagem de Carmen Miranda”, foi agraciada com o prêmio de originalidade masculina pela RioTur (1997; Hotel Glória, Metropolitan, Porto da Pedra, Espaço Terraço RioSul e Lions Club da Ilha do Governador).
Seu principal fundamento é a ALEGRIA, o humor de alto nível, contagiante e inovador, de uma irreverência não militante, não sectária, desprovido de rótulos e de associações limitantes com quaisquer grupos, classes ou agremiações.
Ela retira das malas, malinhas e malões que compõem suas fantasias, muita alegria e bom humor e, com seu carisma, conquista a todas as idades e classes sociais.
É uma genuína síntese da cultura brasileira e da abertura simpática às minorias e às suas causas ao longo da história do Brasil – transformistas, militantes, visionários e criativos também encontram em suas performances, elementos de reforço à sua independência e proatividade, que, aliados à sua irreverência hors-concours, faz com que as conquistas sociais mais importantes sejam vistas como progressistas e bem vindas não apenas para os diretamente envolvidos, mas para todos os segmentos da nossa sociedade.
ISABELITA DOS PATINS
Outra caricata igualmente famosa em todo o país é ISABELITA DOS PATINS,nome artístico de Jorge Omar Iglesias. Destaque nas bandas, desfiles e bailes de carnaval, o artista é uma drag queen argentino-brasileira, que mudou para o Brasil há mais de 30 anos e que ficou famosa quando, em 1993, patinava na Avenida Atlântica, no Rio, e ficou de frente com então candidato à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso, que posou ao seu lado para os fotógrafos presentes. No dia seguinte, foi primeira página dos jornais e revistas e fez parte das charges do cartunista Chico Caruso por várias semanas.
Histórias de drag queens já foram parar no cinema e em programas de TV. Agora, chegou o momento de uma ser eternizada em livro… infantil! “Isabelita, a Menina dos Patins”, de Fábio Fabrício Fabretti, retrata a vida da drag Isabelita dos Patins . A obra fala de uma menina argentina que se encantou pelo Rio e ganha um par de patins no Natal. Um dia, dá um beijo no então presidente Fernando Henrique Cardoso e ganha fama nacional. Essa é parte da história da própria Isabelita contada no livro e acompanhada por ilustrações de pontos famosos da capital fluminense como o Cristo Redentor e os Arcos da Lapa.