De Delcio Marinho Gonçalves
Fotos de memórias do artista
Aos 84 anos, João das Neves faleceu em casa, cercado de amigos, deixando um grande legado para as artes brasileiras
Com mais de 60 anos de atuação na cena teatral brasileira, o dramaturgo, diretor, ator e escritor João das Neves é um artista a seu tempo.
Em 2017 recebeu a 29ª Medalha Chico Mendes de Resistência, sendo homenageado na cerimônia realizada na OAB, no Rio de Janeiro. Em 2015 recebeu importantes homenagens, como da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, SESC Palladium, em Belo Horizonte, e o Itaú Cultural, em São Paulo, que vem somar aos prêmios diversos com que já foi contemplado, como o Molière (vários), Bienal Internacional de São Paulo, APCA, Golfinho de Ouro e Quadrienal de Praga. João das Neves mantém-se em atividade teatral de forma permanente e inovadora, desde os tempos dos Centros Populares de Cultura (CPC) e do Grupo Opinião, do qual foi um dos fundadores ao lado de Ferreira Gullar, Vianinha e outros nomes fundamentais do teatro brasileiro.
Em quase todos os principais momentos do teatro brasileiro dos últimos 60 anos, João das Neves estava presente, tendo atuado no teatro brasileiro em diferentes contextos, espaços e temporalidades. É grande a profundidade da obra deste artista que trouxe elementos marginais da cultura brasileira incorporando à sua dramaturgia identidades da cultura afro-brasileira, da cultura indígena, da mulher, do trabalhador, do homem do sertão, da lavadeira, do sambista, dos homossexuais, das travestis, e mais recentemente das novas famílias; tendo explorado também espaços já existentes (parques, florestas, espaços urbanos habitados ou abandonados) para criar um teatro que se libertou da caixa cênica.
Nos Anos de Chumbo, período de muita resistência do teatro brasileiro, a obra do João era impregnada destas circunstâncias. É uma obra engajada concebida em um período de grande investigação e busca por novos modelos dramatúrgicos para flagrar a realidade instaurada pelo regime militar. Fez teatro de rua com o Centro Popular de Cultura - CPC, do qual fez parte e, com o Grupo Opinião participou de uma série de montagens em teatros de arena. Foi neste período que apresentou sua primeira ruptura com o espaço cênico tradicional. Quebrou o teatro por dentro ao criar para o espetáculo “O Ultimo Carro” uma arena invertida em que a ação se desenvolve em volta do público que é deslocado para o centro da arena e fica inserido na ação. Em cartaz por cerca de dois anos, no Rio de Janeiro e em São Paulo, “O Último Carro” foi assistido por mais de 200 mil pessoas, tendo rendido inúmeros prêmios a João das Neves, como o Prêmio “Arte não catalogada” na 14ª Bienal de São Paulo.
Além desta montagem, o período em que esteve a frente do Grupo Opinião é marcado também por peças como “O Quintal” em que problematiza o golpe militar de 1964 e a atuação de três importantes polos das esquerdas nesse período: o Centro Popular de Cultura (CPC), o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a União Nacional dos Estudantes (UNE); “Mural Mulher”, em que João escreve sua dramaturgia a partir de entrevistas com mulheres de diferentes classes sociais e profissionais, apresentando a condição das mulheres brasileiras no período; “A pandorga e a lei” em que denuncia a tortura; e “Café da Manhã” que apesar de mais intimista transmite o clima de tensão de um país submetido à severa ditadura militar. João das Neves somente encerrou as atividades do Grupo Opinião com o fim da ditadura no Brasil, cumprindo o propósito do Grupo de resistir a este sistema.
Findado este ciclo João das Neves se muda para o Acre, onde mergulha no contexto da floresta amazônica e realiza um trabalho com atores não profissionais que gerou o espetáculo “Caderno de Acontecimentos” e resultou na criação do grupo Poronga. Posteriormente, escreve e dirige o espetáculo “Tributo a Chico Mendes” em que leva ao palco os conflitos e contradições resultantes do choque de costumes entre índios e seringueiros de um lado e latifundiários e governo, de outro. “Yuraiá – o rio do nosso corpo” é sua última peça escrita no Acre, ainda inédita, e que retrata a saga do povo Kaxinawá que, iniciada na cidade de Rio Branco, sua capital, ganha corpo nos seringais e tem seu auge nas regiões mais afastadas da floresta amazônica, onde vive este povo contatado há mais de cem anos pelos brancos.
João das Neves sempre foi aberto para as múltiplas vozes que formam a cultura brasileira sendo a identidade o tema central. As lutas e alegrias de brasileiras e brasileiros são o ponto em comum de peças como “A Santinha e os Congadeiros” que conta o mito fundador do Congado – manifestação cultural e religiosa afro-brasileira – com atuação dos próprios congadeiros, integrantes de várias irmandades; “Maria Lira” que traz a história da artesã, educadora e pesquisadora da região do Vale do Jequitinhonha no sertão mineiro, sendo esta mesma região também cenário da peça inédita “Ulisses, a trajetória” onde Ulisses-herói da Guerra de Tróia e Ulisses-lendário artesão do Jequitinhonha, representantes de culturas arcaicas equivalentes, mas distanciadas no tempo em mais de 2.500 anos, se defrontam poeticamente (Premio Funarte/2009). Neste tema também dirigiu as peças “As polacas: flores do lodo”, que trata da realidade das prostituas judias na região portuária do Rio de Janeiro no século XIX; a também inédita peça “Frida Kahlo: páginas esparsas”; o texto coletivo para a peça “Bonecas Quebradas”, que trata do feminicídio no México; “Besouro, Cordão de Ouro” e “Galanga Chico Rei”, ambos também com temática afro brasileira, numa parceria de sucesso com Paulo César Pinheiro autor dos textos e músicas; “Zumbi”, de Boal e Guarniere com música de Edu Lobo; “A Farsa da Boa Preguiça”, texto de A.Suassuna e “Aos Nossos Filhos”, de Laura Castro.
Em 2015 dirigiu, juntamente com Rodrigo Jerônimo, a peça “Madame Satã”, tendo também assinado a dramaturgia juntamente com Marcos Fábio de Faria. Neste ano também dirigiu pela primeira vez sua peça teatral “A Lenda do Vale da Lua”, escrita em 1975, recomendado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, encenada dezenas de vezes, mas nunca pelo autor. Em 2016 retornou aos palcos como ator com o espetáculo “Lazarillo de Tormes”, que cumpriu temporada também no Teatro Francisco Nunes, em 2017. Todo em versos que nos remetem à literatura de cordel e aos desafios dos cantadores nordestinos ou às rimas dos MCs de Hip Hop, Lazarillo nos conduz, pelas mãos da literatura popular, a um Brasil profundo, onde a existência de mazelas se mescla ao desafio de enfrentá-las com humor e confiança em nossas possíveis ações, capazes de erradica-las para todo o sempre.
A dramaturgia de João das Neves contempla ainda as adaptações teatrais de textos literários e também a produção infantil. Dentre as adaptações, “Primeiras Estórias”, adaptação de contos do livro homônimo de Guimarães Rosa talvez seja a mais emblemática, sendo uma obra inaugural de um recente período em que as artes cênicas, superando a então existente dicotomia entre teatro de rua e palco italiano, ocupam espaços não convencionais. A adaptação de João para diferentes nichos dentro de parques públicos lança mão de diversas estéticas e linguagens cênicas para compor um mosaico de relações entre atores e expectadores. Algo semelhante se passa também com “Troços e Destroços”, adaptação de contos do livro homônimo de João Silvério Trevisan, de temática homoafetiva encenado por João, ocupando integralmente um prédio neomanuelino de cinco andares, no centro da capital mineira, estendendo-se a ruas adjacentes. Outras adaptações que se destacam são “Pedro Páramo”, que parte do romance homônimo de Juan Rulfo e que foi encenado por João em um túnel suburbano desativado, passagem obrigatória entre dois bairros periféricos de Belo Horizonte; e “Cassandra”, adaptação de novela homônima de Christa Wolf, encenado por João em uma pedreira desativada em Campinas. “Lazarillo de Tormes” é sua produção mais recente que o artista escreveu inspirado na descoberta do que pode ser o texto original da obra homônima criada na Espanha no século XVI e que marcou seu retorno aos palcos como ator.
Em seu aniversário de 84 anos, em janeiro de 2018, João das Neves lançou seu mais novo livro “Diálogo com Emily Dickinson” (2018) vem reafirmar seu talento nesta arte, a exemplo do livro de hai kais “Rumores”, com co-autoria de Silvia Mera (2014) e dos hai kais publicados na antologia intitulada Primavera, publicada por Massao Ohno (1989). Inspirado pelos poemas de Emily Dickinson, João das Neves ao longo dos últimos 20 anos criou versos que dialogam com a obra desta poeta norte-americana que marcou época. Haikais, aforismos, sonetos, poemas em diversos estilos estão reunidos no livro “Diálogo com Emily Dickinson”, que traz belíssimas ilustrações de Diane Ichimaru e projeto gráfico da Jiló Design, comandada pela talentosa dupla Júlio Abreu e Leonora Weissmann.
Este encenador tem ainda uma história particularmente bela com a música. Entre os nomes que dirigiu figuram Milton Nascimento, Chico Buarque e MPB4, Taiguara e, recentemente, Elomar e Titane. Óperas contemporâneas, como Qorpo Santo, de Jorge Antunes ou cantatas, como Continente Zero Hora, de Rufo Herrera, nas quais atuou, acentuam sua ligação com a música e com os músicos.
João das Neves manteve um espaço de produção intelectual sobre o fazer teatral em publicações europeias e latino-americanas, além de editar traduções, poemas e livros de ficção para crianças que receberam inúmeras premiações. Como colaborador das Revistas Humboldt (Bonn, Alemanha) e Palavra (Belo Horizonte), publicou ensaios sobre o teatro contemporâneo, a nova dramaturgia e o universo indígena no teatro brasileiro. Em 2003, assinou contrato com a Editora Dimensão para reedição do texto teatral infantil “A Lenda do Vale da Lua” (prêmio SNT/1975) e tem publicada, pela mesma Editora, a 4a. edição de “Por Um Triz a Elis Ficava Sem Nariz”.
Toda essa produção gerou registros importantes que formaram o acervo de João das Neves que em 2015 foi restaurado e organizado, por meio do patrocínio do Rumos Itaú Cultural, e posteriormente doado para a Biblioteca Universitária, sobre a guarda da Divisão de Coleções Especiais e Obras Raras da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, sendo um dos acervos mais visitados da instituição. João deixa obras inéditas, como YURAIÁ – o rio do nosso corpo, que reflete seu interesse pela cultura indígena e seu engajamento na luta pela preservação das diversas etnias que ocupam e ocuparam o território brasileiro. Este texto é fruto de sua convivência com os índios Kaxinawá do Rio Jordão/Acre, na década de 1980 e segue inédito, apesar de inúmeras tentativas de financiamento.
Conhecedor da cultura brasileira viajou e residiu em diversos estados, trazendo sempre elementos das culturas do interior do país para sua dramaturgia. No Rio de Janeiro e São Paulo, onde viveu os primeiros anos 30/40 de trabalho, depois Salvador, Rio Branco e Minas Gerais, lugares onde residiu/reside, João das Neves vem deixando sua marca como encenador e pensador do teatro contemporâneo, afora os diversos lugares por onde transitou com mais freqüência, a exemplo do México e da Alemanha.
Aos 84 anos, João das Neves faleceu em decorrência de metástase óssea, deixando sua companheira Titane e duas filhas Maria João (29) e Maria Íris (17). O velório será a partir das 12 h, no crematório Parque da Colina, em Belo Horizonte.